Ela o esperava à porta,
trazendo uma ansiedade maior do que gostaria de carregar e mostrar, mais por
não saber ser outra coisa do que por capricho ou vaidade. Quando todos saíram e
os cheiros se misturaram, ela logo o reconheceu pelo azul intenso que carregava
e emanava, primeiro com o olhar que identifica algo nitidamente índigo em meio
a outros tons abatidos e desbotados. Depois veio o olfato e o rastro agridoce e
pouco enjoativo que ele deixava por onde passava e que a alcançou metros adiante,
como uma corrente de ar que nos acaricia o rosto, buscando reconhecimento
apesar da aparente banalidade do ato. Então, para ser identificada, ela, que
ainda não havia descoberto sua própria cor, apesar dos anos que entravam e
saíam e das experiências que quase todos diziam ser as melhores na vida e pelas
quais já havia passado, levantou o braço e sacudiu a mão direita com vigor para
que fosse vista. Assim, de alguma forma, o índigo parou de dissipar energia em
público e se reservou um tanto a ela, que agora corava um pouco, mesmo sendo portadora
de relativa bagagem de relacionamentos e vivências. A verdade é que o fato de
terem se reencontrado casualmente em uma livraria dois dias antes, após anos
afastados pelo brilho de uma amizade que não acontecera, causava-lhes um constrangimento
adolescente e inofensivo naquele segundo momento, quando a maturidade lhes
batia à porta.
Caminharam lado a lado,
mudos e quase cegos deles mesmos; é que ainda não se haviam permitido trocar olhares. Eram duas
pessoas com trinta e tantos anos, metabolismos lentos, uma série de decisões
relevantes quase tomadas na última década, marchando tesos como soldados,
fingindo espiar ao longe o interesse. Logo, isso passaria.
Ao avistar
um café, ela teve a ideia de entrarem e finalmente a tensão deu lugar a
um desconforto fácil, conhecido dos dois. Repetiram alguns diálogos trocados
dias antes, amenidades e notícias sobre colegas da época de faculdade. Foi
quando a conversa pareceu se tornar menos superficial e ela fincou um cotovelo
sobre a mesa e segurou o rosto com a mão, observando-o com interesse. Podia ser impressão, mas o azul dele vinha se
apagando aos poucos durante a caminhada e agora empalidecia enquanto falava de
sua carreira como ator, do sucesso que fizera na televisão e do futuro no
teatro e no cinema. O discurso do personagem a sua frente, quase melhor amigo e
profissional de relativa notoriedade, não correspondia às pequenas safiras que
ainda lutavam por sobreviver nas pontas daqueles dedos curtos e inquietos. Apesar
de não parecer atuar ali com ela, bebericando o expresso, soltando palavras de
otimismo e até pequenas gargalhadas, as mãos do homem eram como as de um
pequeno cadáver azulejadas pelas circunstâncias. A conversa parecia fluir mesmo
com a discrepância da situação, do celeste que se afogava no desespero contido
dele e do olfato sensível da mulher, que procurava pelo doce e pelo amargo mas
que, àquela altura, só conseguia distinguir o cheiro forte do café. Foi quando
ela percebeu que precisava de uma pausa sutil e que não a comprometesse, algo
em que se havia especializado nos últimos anos, quando se fazia ausente sem que
o outro percebesse. Para isso, piscou e hesitou um pouco em abrir os olhos, tudo em
menos de dois segundos, mas suficientes para que se protegesse das ações
oxidadas e pouco inspiradas da tarde. Inserida
em um minúsculo intervalo de tempo, a memória de uma determinada imagem a
arrebatara de forma única: avistou-se sozinha, há quase vinte anos, em uma
pequena e acolhedora sala de cinema. Naquele dia, o filme de um diretor polonês
mudara sua vida, despertando nela a capacidade de alcançar os tons das pessoas
antes mesmo de conhecê-las. A despeito do impacto que causara, mudando seu rumo
para sempre, ela não quis encarar como um dom ou nada que remetesse ao
sobrenatural, apenas uma característica a mais em sua personalidade. Talvez um
pouco excêntrica, é verdade, como quando descobriu que quase todos possuíam uma
cor original e que, ao longo da vida, seria possível misturá-la a outras ou até
mesmo perdê-la, em alguns casos, sem volta. Ou quando, poucos anos depois dessa
descoberta, apaixonou-se pelo escarlate de um homem no metrô e o perseguiu por quatro
ou cinco quarteirões, depois que descera na mesma estação que ele. Eram
momentos excepcionais, quando ela se deixava levar pela emoção das nuances e
constatava, absorta, que a vida era regida por ela, ainda que por breves
momentos.
Então, já com as mãos
descansando sobre o colo, aquietada pela certeza do que a levara até aquele
café e certa de que mesmo a constatação do crepúsculo das cores a interessava, ela
decidira fazer parte da cena do amigo, passando à condição de espectadora. Afinal,
tratava-se de uma cena trivial, apenas um casal conversando, como tantos
outros. O espocar de gradações e matizes, as diversas silhuetas em volta passando
do terracota ao lilás em poucos segundos, isso pertencia ao mundo dela e, de
certa forma, não a aterrorizava mais.