terça-feira, 1 de setembro de 2015

"Niebieski"


Ela o esperava à porta, trazendo uma ansiedade maior do que gostaria de carregar e mostrar, mais por não saber ser outra coisa do que por capricho ou vaidade. Quando todos saíram e os cheiros se misturaram, ela logo o reconheceu pelo azul intenso que carregava e emanava, primeiro com o olhar que identifica algo nitidamente índigo em meio a outros tons abatidos e desbotados. Depois veio o olfato e o rastro agridoce e pouco enjoativo que ele deixava por onde passava e que a alcançou metros adiante, como uma corrente de ar que nos acaricia o rosto, buscando reconhecimento apesar da aparente banalidade do ato. Então, para ser identificada, ela, que ainda não havia descoberto sua própria cor, apesar dos anos que entravam e saíam e das experiências que quase todos diziam ser as melhores na vida e pelas quais já havia passado, levantou o braço e sacudiu a mão direita com vigor para que fosse vista. Assim, de alguma forma, o índigo parou de dissipar energia em público e se reservou um tanto a ela, que agora corava um pouco, mesmo sendo portadora de relativa bagagem de relacionamentos e vivências. A verdade é que o fato de terem se reencontrado casualmente em uma livraria dois dias antes, após anos afastados pelo brilho de uma amizade que não acontecera, causava-lhes um constrangimento adolescente e inofensivo naquele segundo momento, quando a maturidade lhes batia à porta.
Caminharam lado a lado, mudos e quase cegos deles mesmos; é que ainda não  se haviam permitido trocar olhares. Eram duas pessoas com trinta e tantos anos, metabolismos lentos, uma série de decisões relevantes quase tomadas na última década, marchando tesos como soldados, fingindo espiar ao longe o interesse. Logo, isso passaria.
 Ao avistar  um café, ela teve a ideia de entrarem e finalmente a tensão deu lugar a um desconforto fácil, conhecido dos dois. Repetiram alguns diálogos trocados dias antes, amenidades e notícias sobre colegas da época de faculdade. Foi quando a conversa pareceu se tornar menos superficial e ela fincou um cotovelo sobre a mesa e segurou o rosto com a mão, observando-o com interesse.  Podia ser impressão, mas o azul dele vinha se apagando aos poucos durante a caminhada e agora empalidecia enquanto falava de sua carreira como ator, do sucesso que fizera na televisão e do futuro no teatro e no cinema. O discurso do personagem a sua frente, quase melhor amigo e profissional de relativa notoriedade, não correspondia às pequenas safiras que ainda lutavam por sobreviver nas pontas daqueles dedos curtos e inquietos. Apesar de não parecer atuar ali com ela, bebericando o expresso, soltando palavras de otimismo e até pequenas gargalhadas, as mãos do homem eram como as de um pequeno cadáver azulejadas pelas circunstâncias. A conversa parecia fluir mesmo com a discrepância da situação, do celeste que se afogava no desespero contido dele e do olfato sensível da mulher, que procurava pelo doce e pelo amargo mas que, àquela altura, só conseguia distinguir o cheiro forte do café. Foi quando ela percebeu que precisava de uma pausa sutil e que não a comprometesse, algo em que se havia especializado nos últimos anos, quando se fazia ausente sem que o outro percebesse. Para isso, piscou e  hesitou um pouco em abrir os olhos, tudo em menos de dois segundos, mas suficientes para que se protegesse das ações oxidadas  e pouco inspiradas da tarde. Inserida em um minúsculo intervalo de tempo, a memória de uma determinada imagem a arrebatara de forma única: avistou-se sozinha, há quase vinte anos, em uma pequena e acolhedora sala de cinema. Naquele dia, o filme de um diretor polonês mudara sua vida, despertando nela a capacidade de alcançar os tons das pessoas antes mesmo de conhecê-las. A despeito do impacto que causara, mudando seu rumo para sempre, ela não quis encarar como um dom ou nada que remetesse ao sobrenatural, apenas uma característica a mais em sua personalidade. Talvez um pouco excêntrica, é verdade, como quando descobriu que quase todos possuíam uma cor original e que, ao longo da vida, seria possível misturá-la a outras ou até mesmo perdê-la, em alguns casos, sem volta. Ou quando, poucos anos depois dessa descoberta, apaixonou-se pelo escarlate de um homem no metrô e o perseguiu por quatro ou cinco quarteirões, depois que descera na mesma estação que ele. Eram momentos excepcionais, quando ela se deixava levar pela emoção das nuances e constatava, absorta, que a vida era regida por ela, ainda que por breves momentos.
Então, já com as mãos descansando sobre o colo, aquietada pela certeza do que a levara até aquele café e certa de que mesmo a constatação do crepúsculo das cores a interessava, ela decidira fazer parte da cena do amigo, passando à condição de espectadora. Afinal, tratava-se de uma cena trivial, apenas um casal conversando, como tantos outros. O espocar de gradações e matizes, as diversas silhuetas em volta passando do terracota ao lilás em poucos segundos, isso pertencia ao mundo dela e, de certa forma, não a aterrorizava mais.


terça-feira, 7 de julho de 2015

Rua dos Ratos

Sabia que não estava mais aqui e ainda assim o atendi porque era um sinal de reaproximação e expiação, talvez por minha parte, mesmo a iniciativa tendo partido dele. A voz soou tão nítida que quase pude pegá-la, sem pigarro algum ou interjeições, apresentando um volume apesar de monocórdia. E eu surpresa porque fora desperta pelo tom quase impassível de quem há pouco tempo não emitia som algum e se entregara, lentamente, ao que chamavam de interrupção definitiva. Conformei-me com o realismo fantástico da situação e sorri por dentro porque não quis assustá-lo ao trazê-lo de volta àquilo a que estamos acostumados, ao nosso corriqueiro diário, por alguns segundos. Ele andava se esquecendo das coisas, era verdade, e isso se tornava uma grande vantagem naquela circunstância banal e ao mesmo tempo extraordinária de se lembrar de mim em plena madrugada chuvosa e pedir para que eu fosse ao corredor a fim de que o ouvisse melhor. Tudo bem não estarmos mais tão próximos – talvez nunca tenhamos criado essa chance -, mas não poderíamos deixar de valorizar aquele chamado como algo único e inesperado. A não ser perto do fim, quando as paredes já não estavam mais tão sólidas e resistentes, nascera um olhar menos amargo e mais generoso comigo mesma e que acabou se estendendo sobre ele. De certa forma, já era tarde. Mas era o que se podia fazer: pouco e muito, quase nada e tudo o que estivesse disponível dentro da imaginação, nos limites da sanidade. Algum conforto naquilo que se delimitava a cada dia mais próximo do que todos conheciam, mas não mencionavam.
Nossa despedida acontecera em um dia de luzes brancas azuladas distorcendo a realidade, talvez para uma noção menos dolorosa de tudo, dois dias antes do dia definitivo. Estivemos lado a lado e por vezes dividimos a angústia alternando com a serenidade. Desloquei-me agilmente porque a situação pedia uma certa dinâmica e busquei compaixão no que fazia, quando pude fazer algo. Era difícil ser positiva na posição em que me encontrava;  eu podia afagar sua cabeça, esfregar o braço esquerdo inchado e disforme, aquecer os pés inertes com o cobertor, mas não podia levantar falsas esperanças. Então, em agradecimento, ao dizer boa noite, ouvi um “Deus te abençoe” lúcido e límpido como o telefonema que recebera esta noite e soube que finalmente ele estava partindo.             



Lua

Então você procura dentro do que tem em si mesmo e o que carrega como sendo seu, e constata sem surpresa que o que foi formado adensou-se sobre uma base sólida e o que orbitava em torno do pesado e do estável, um pouco leve às vezes, poderiam ser também as experiências mais ricas e nobres. Como um satélite que se faz de interlocutor, que procura uma resposta ao monólogo que sempre viveu dentro dela, que já estava lá quando foram ouvidos os primeiros ruídos, as trocas primitivas de tecidos celulares, os tijolos que nunca foram os mais bonitos, mas ainda assim eram os de fundação, os que se ainda mantinham em pé quando tudo o mais vinha por terra e se renovava, como deveria ser. Isso que era, por assim dizer, ‘solto’ e não se comprometia, que ainda tinha fôlego para ir à tona e voltava trazendo notícias, isso era o caminho que ainda não havia sido percorrido. Ele prometia e me imaginava querendo percorrê-lo e até fazia poesia para seduzi-la, mas sempre preferi prosa e ela resistia também porque era sua função resistir e se mostrar lívida para ele, o satélite que orbitava e agia sob uma força atípica e estranha dela, mas que também seguia sua própria rota em função de seus dias.    

Porque ela sabia que, se tivesse esperado, nada teria mudado. 

quinta-feira, 2 de julho de 2015

Ensaio I

São como caixas e, assim que abertas, uma exclui a outra, pelo menos na maior parte das vezes. Em algumas ocasiões coabitam, chegam a ornar o ambiente, mas isso não significa paz ou nenhuma outra utopia sussurrada nas entrelinhas. Significa na verdade que estava me expondo um pouco, usando quase um sortilégio dado o encantamento do outro quando enxerga mais um lado antes velado, vislumbrando um pouco da personalidade prismática e disforme mas não despojada por completo de fascínio.
Logo aquilo se irá e as caixas ficarão empilhadas em algum canto. São de madeira marchetada, trabalhadas com esmero, de uma época em que o tempo não contava os segundos e minutos assim, trôpegos virando horas. Algumas possuem detalhes em madrepérola e foram compradas em brechós, suas tampas deslizam com facilidade de menina descendo o escorrega. São bastante suaves mas ao mesmo tempo gritam para que guarde ali o melhor de mim. Coleciono nelas nomes de livros e filmes que pretendo ler e assistir, assim como frases importantes de autores conhecidos ou mesmo nunca lidos. Elas não sabem, mas essas caixas, as que guardam papéis meio rasgados e meio inteiros, tirinhas manuscritas, são as minhas prediletas. Não se sabe exatamente o motivo, longe de ser puramente uma questão estética, mais talvez por guardarem tesouros e os desconhecerem – promessas de futuros encontros, grandes descobertas. As outras, marchetadas, são difíceis e  trazem a floresta em tudo o que são e fazem. Densas e emaranhadas, parecem perder o sentido quando uma certa fluidez toma de assalto uma seqüência de dias. Se esses se transformam em semanas, elas simplesmente desaparecem das prateleiras, não exibindo mais formas, chaves ou aberturas frontais. As folhas de madeira incrustadas desfazem-se de seus limites e se tornam uma coisa só; antes uma paisagem rica e detalhada limita-se agora a uma massa unificada, conhecida e despercebida por todos. Torna-se lisa, reta, sem sobressaltos ou reentrâncias, nenhuma surpresa mais por debaixo da tampa que, por esses tempos, mais parecia carvão, bruto e estéril, sem milagres.


O início